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O Chamado da Deusa - posted by guest on 7th May 2020 08:51:05 PM

Uma nova noite se aproxima, e com ela, a magia antiga, perdida e esquecida. Dádivas sombrias, escuridão, lágrimas e lamentos. A divina Congregação das Bruxas — com os corações quase inteiramente ressecados de desgosto — se reúne mais uma vez para a reconquista dos tronos divinos. Se tu, leitor, te questionas o propósito ou até mesmo a força de uma bruxa, apenas saiba que sentimos profundamente a dor de todas as coisas, e isso é o que nos sustenta. A Congregação tudo vê. Atenta-te!

É indispensável tal fato sobre as reuniões de um Coven: estas nunca devem ser interrompidas por Cowans, aliás, por nenhuma espécie de não-bruxos, sejam estes cavaleiros ou caçadores. Eu poderia sentir o cheiro de suas intenções a quilômetros de distância... em devaneios, constantemente os via e sentia, covardes e vorazes predadores rastejando sobre uma terra que sangra em sofrimento. Mas é inadmissível se esperar comportamento diferente de homens, seres fracos e atormentados que se agarram à vida enquanto a esperança se esvai. Quanta mediocridade! A ânsia por supremacia arranca pelas raízes cada pedaço singelo de humanidade que lhes havia restado, se é que algum dia verdadeiramente lhes pertenceu. Compreendo tamanha intimidação e severidade de tuas palavras e ações, visto que apesar de ordinários, todo ser humano possui a consciência de que medo é reverência, e reverência é poder. E cada um deles, instintiva ou conscientemente, possui este desejo estabelecido em seus princípios.

Reunida com outras doze irmãs, encontrávamo-nos vivenciando o momento específico em que as cores do céu se encontram tingidas e pinceladas numa aquarela infinita de harmonia — quando o horizonte se anula e o que é dia se transforma no que é noite; o brilho do Sol ainda cria tons quentes e alaranjados entre as nuvens, porém a Lua e as estrelas já podem ser vistas em nitidez razoável — quando subitamente, mesmo de olhos fechados, sinto um calafrio que alastra meu organismo por completo, esclarecendo a aproximação de almas errantes. Sinto a covardia, a inquietação e a inconsistência desta raça, caracterizando devidamente tais seres incapazes e limitados. São dois deles. Vagarosamente minhas pálpebras se levantam e posso me enxergar junto às minhas aliadas, nossos corpos nus e reunidos, banhados em meia-luz. O brilho dos olhos delas contrai minhas pupilas e me faz irradiar um sorriso maléfico.

Me pergunto o que haveis de encontrar aqui, caçadores, amaldiçoados pelo vosso Sol vazio.

Tais palavras são liberadas intensamente do meu íntimo e, juntas, utilizando energias de todo o Coven, paralisamos cada movimento de ambos os caçadores, que por sua vez, afrouxam-se e despencam os corpos debilitados sobre a terra. A aglomeração de gargalhadas e vozes penetrantes se dispersam sob o ambiente crepuscular, onde se levanta o vento e folhas secas de árvores mortas bruscamente flutuam. “Erga-te novamente, Cavaleiro do Eclipse de outrora, empunha tua arma!” “Não consegues te erguer? Trágico...” “Já vislumbrei o teu destino.” “Não permitirei que tenhas paz na morte.” “Queime na podridão.” De certa maneira, torna-se gratificante observar a expressão em vossos rostos implorando por salvação em contraste com corpos estáticos, tais como pseudocadáveres.

Venham, irmãs das sombras — num tom de voz ríspido e acentuado, exijo que se inicie o sacrifício aos deuses — que a magia antiga nos guie até o fim. Que as sepulturas marquem o nosso retorno. O Novo Mundo deve ruir!

Com os corpos dominados e centralizados, rodeamo-nos, ajoelhadas. Ordeno a todas que rasguem o coração dos homens e bebam de seu sangue, para que eu, a Rainha Bruxa, possa recitar a cerimônia. Nossa mestra radiante, gradualmente se agita nas profundezas do território. A deusa lunar desperta, e vem na forma de uma coruja cornífera, uma vez que a magia tem a capacidade de assumir diversas formas. Conseguimos, então, sentir o mundo real se contorcendo sob nossos pés. Nos erguemos. A partir de agora, a magia antiga há de nos moldar, nos reforjar em formas novas e belas.

Ó, grande coruja cornífera, tua hora chegou! Sou eu, Agnes, rainha da Congregação, assoladora do Novo Mundo. Viemos em prol de entregar bençãos para ti, minha Soberana. Venha a mim, aceiteis minha oferenda! Mestra radiante, conceda-me teu poder! Eu represento a voz divina.

A coruja, então, em um bater de asas rigoroso, fantasticamente abrilhanta nossos corpos com a exorbitante luz do luar, nunca vista antes, por nenhuma das bruxas, de maneira tão intensa e vigorosa. Tão forte esta luz que nos dificulta até mesmo distinguir o que existe em nossa frente.

Perdoe-me, grande mestra! — interrompo o ritual para sanar uma dúvida, antes que seja tarde demais — Porém, após o ocorrido e tamanha crueldade em nossos atos, como não tornar-nos-emos tão indignas de viver quanto estes homens? Como não deixar-nos-emos levar pelas armadilhas deste planeta? Orienta-nos com tua sabedoria!

E então, abruptamente, metamorfoseamo-nos em treze deslumbrantes corujas corníferas brancas, e podemos escutar uma voz celestial, doce e longínqua, durante nosso primeiro voo.

Caras descendentes divinas, a história de todos os homens acaba em morte. Todavia, não somos homens. Jamais morreremos.

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