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Outra Chance - posted by guest on 9th September 2020 06:17:15 AM
Abro os olhos lentamente. Minha cabeça gira e a dor é quase insuportável. A cor branca do aposento à minha volta é cegante. Chorei desesperadamente. Apago.
Lembro pouca coisa dos momentos que antecederam essa memória. Flores, muitas flores e pessoas vestidas de preto. Cheiro de vela. Canções cristãs (E nem me lembro de ser religioso).
Recobro-me novamente e estou em um lugar totalmente diferente. Vejo alguns rostos estranhos e fico muito assustado. Choro copiosamente. Aparentemente não consigo falar. Teria eu sofrido um acidente e perdido a memória e o poder da fala? Durmo.
Minhas memórias vêm e vão. Recordo-me de onde morava: um bairro à oeste de Berlim. Lembro-me do jardim de gérberas abaixo da janela que dava pra rua, da porta azulada, da caixa de correio carmesim.
Uma mulher. Minha esposa. Olhos cinzentos, cabelos cacheados e loiros, pele pálida como vela.
Dois homens. Meus filhos. Lembro claramente de suas brigas na nossa ceia de Natal muito farta. Do cheiro do peru e das passas. Na parede da sala, um quadro de um homem grisalho e com bigodes bem cuidados. Sou eu.
Acima da lareira, uma medalha dourada de honra cuidadosamente lustrada. Vejo-me recebendo uma condecoração no exército alemão. As guerras. Ouço os tiros, as bombas. O cheiro de poeira. Lembro de Hitler me saudando rapidamente enquanto aperta as mãos dos outros soldados sobreviventes. Acaricio a suástica bordada no meu uniforme com orgulho.
Um carro. Eu dirijo um carro em uma das rodovias alemãs enquanto toco a mão da minha esposa no banco ao lado. Ela sorri em resposta e uma luz nos cega. Lembro da dor do impacto. Ela sobrevive e eu vou para um lugar sombrio com um túnel muito longo. Vejo um pequenino ponto luminoso no final.
Tudo se esvai.
Nenhum dos rostos que me olhavam é memorável. E uma coisa me chama muito atenção: os rostos são pretos. Não são negros, são pretos mesmo. Retintos. Entro novamente em pânico.
Um dos rostos, o de uma mulher com uma mancha marrom abaixo dos olhos, me pega no colo como se eu fosse algo muito pequenino e me leva até o banheiro. Ela está mexendo em alguma coisa na pia e é quando eu olho para o espelho logo à nossa frente e o choque vem.
Sou um bebê. Essa é minha família negra. A bandeira sul-africana está na camiseta de uma das crianças que parecem ser meus irmãos. São dezenas delas. Todas escuras como carvão. Não pode ser. A vida não seria tão injusta comigo.
Ou seria?
Sem mais opções do que fazer, choro novamente.
J.GABRIEL