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LOBO: EXLIO EM HOLLYWOOD - REVISTA BIZZ, AGOSTO, 1989 - posted by guest on 26th May 2020 07:14:08 PM
    O Lobo surge sob o portal e revela o focinho comprido. Ele se exibe, gargalhante, a uma platia pequena - porm atnita - reunida no estdio caseiro em Beverly Hills. Detrs do lobo, aparece uma mmia - de meias cor de pssego e bermuda florida, mas indiscutivelmente mmia decrpita, com teias de aranha sobre as rbitas deformadas. O lobo  igualmente asqueroso, com orelhas peludas mal ocultas por um chapu de feltro, onde repousa uma fatia de queijo.

    Queijo? Lobos comem porcos, galinhas, ovelhas. Queijo, nunca. Mas este em questo procede, porque no  um lobo, afinal, o companheiro da mmia e sim um baita senhor Joo Rato: dentuo, peludo, cor de burro quando foge, de jeans, culos pendurados num dos bolsos da camisa de mangas compridas e uma lngua obscena, que pende das presas ensangentadas.

    Para tornar mais confusa a charada, dom Rato remove a mscara pontuda e mostra que, por baixo dela, reside, na verdade, um lobo. De apelido, mas um Lobo: recm-bronzeado e jubilante com os brinquedos comprados minutos atrs numa das muitas lojas de besteiras enfileiradas em Hollywood, sugesto da mmia - alis, Teca Macedo, mulher de Liminha -, que sai correndo em busca de uma cmera para fotografar as aquisies.

    "Olha s", resfolega o Lobo com um sorriso infantil e maroto, tirando de duas sacas muitas outras mscaras igualmente horripilantes, mais um esqueleto infivel, ao qual ele d volume com potentes lufadas. "Minha filha comeou a engatinhar hoje, e eu precisava comprar um presente para ela, para comemorar. O presente? Um gorila inflvel, de dois metros de altura. Logicamente.

 

    Com as malas ainda longe de prontas para a volta ao Brasil, Lobo - dois dias mais tarde -senta-se no cho e vai ouvindo com Liminha as mixagens finais do disco que gravou durante quase trs meses em Los Angeles, Sob o Sol de Parador ou Um Bobo pra Cristo ou Uma Dose a Mais, - ele ainda no se decidiu pelo ttulo ("Tpico", Lobo comenta). Ele fala tambm sobre as diferenas entre as duas verses de "Azul e Amarelo" - uma bossa-nova ao mesmo tempo doce e sombria, parceria com Cazuza -, diz preferir a que sublinha a percusso, mas Liminha contemporiza argumentando que as duas so boas e que ainda h tempo para se decidir at o corte do acetato. Quatro faixas mais tarde, Lobo pensa seriamente em adiar a viagem para poder ver David Bowie e sua Tin Machine no minsculo Roxy, um show exclusivssimo de que s se sabe nas internas angelenas. Alm do mais, ele e Liminha decidem, na hora, gravar como bnus extra para a verso do disco em CD, mais uma msica, "Um Hino ao juiz", em russo, baseado no poema homnimo de dez estrofes escrito por Maiakvski (" sobre o homem e a justia". explica Lobo).

    Como se fosse preciso algo mais. Qualquer que seja o ttulo, o sexto disco de Lobo  o melhor de sua carreira - conciso , bem focado, urgente e tpico sem ser estabanado, equilibrado, maduro. E , sem sombra de dvida, o que tem o melhor som de toda a discografia. "Esse disco me faz pensar que os outros eram demo-tape", enfatiza Lobo. "Parece que estou fazendo meu primeiro disco agora."

    Aps quase dois anos morando e trabalhando de Los Angeles para o Brasil, Liminha  hoje o nico produtor brasileiro de nvel internacional, e essa supremacia torna-se bvia em Sob o Sol de Parador (ou...). Descontada a barreira da lngua, este disco poderia tranqilamente disputar palmo a palmo com qualquer recheio de hil parade em vigor.  tecnicamente perfeito, sem perder o teor humano alternadamente, cru e lapidado com esmero.  complexo - como em "Panamericana" (o antettulo da faixa que d nome ao lbum), escrita por Lobo com Tavinho Paes e Arnaldo Brando, de uma estrutura sofisticada que sustenta uma metralhadora giratria de frases contra os ditadores e o terror e tambm em "Quem Vai Votar" (ex-"O Sofisma"), dois nicos acordes em sucesso espiral, com ecos claros dos Sex Pistols, enquanto Lobo cospe "A poltica faliu / no d mais pra segurar / at o que  civil parece militar" -, ultrapesado, principalmente nos ataques incendirios do guitarrista Carlo Bartolini, ex-Ultraje, em "Sexy Sua" (semi-indita de Arnaldo Baptista) e "E o Vento Te Levou". Tambm pode ser dolente, como no calipso/rancho "Essa Noite No" e em "Toda Nossa Vontade", inspirada numa carta de Olga Benrio, mulher do lder comunista Lus Carlos Prestes. Tem elementos a granel para ser classico, longevo e comercial.

 

    E por pouco esse disco - que poder arremeter Lobo a um patamar de vendas bastante superior s oitenta mil cpias de praxe - no nasceu. Por razes geogrficas - a RFFSA ainda no liga o Leblon ao Vale de So Fernando -, tticas e diplomticas. No necessariamente nesta ordem.

    "A gente - eu e Bernardo (Vilhena) - estava ouvindo uma fita do Arnaldo Baptista para ver qual daquelas msicas eu poderia ter condies de interpretar, como um tributo ao Arnaldo." Lobo acabou de acordar de uma soneca ps-almoo e rememora, recostado num cobertor, dentro de uma das salas do estdio Ameraycan, em North Hollywood, subrbio de Los Angeles. "Eu encontrei o Arnaldo em Juiz de Fora - ele est morando l, bem no countryside - e me entregou uma fita com msicas incrveis. Antes disso, eu estava pensando em gravar uma msica dos Mutantes. Pensava assim: P, todo mundo, quando fala da histria do rock brasileiro, comea a reportar dos anos 80. Ningum se lembrava do Seixas, dos Mutantes, dessas coisas todas. Vamos pegar uma msica do Arnaldo - sempre fui f ardoroso dos Mutantes."

    Foi a que aconteceu o telefonema.

    "Me ligaram (de um jornal que estava fazendo uma reportagem sobre Liminha) dizendo assim: T uma unanimidade em relao ao Liminha. Todo mundo fala que ele  muito bom... Eu sempre fui amigo do Liminha. A gente sempre trabalhou/brincando junto. Mas o Lobo mordeu a isca. Ah, ento vocs querem que eu fale mal dele? Ento diz a que ele  um tecnocrata.’ E o jornal publicou a frase. A jornalista estava pensando num elemento de discrdia, ento mandei essa.

    "Depois disso, o Liminha, muito filhadaputamente, me telefonou (imitando o produtor): Lobo? Obrigado, hein? Gostei de ser chamado de tecnocrata. Muito bem... mas, agora. voc no gostaria de entrar numa faixa do disco do Wander (Taffo, ex-Rdio Txi) cantando? E eu: Claro, j estou indo. E foi exatamente o que aconteceu. Fui para l (o estdio Nas Nuvens, no Rio de Janeiro), brincamos de autorama e a sesso de gravao foi muito boa - o Liminha me produziu a voz muno bem: Lobo, voc est bebendo muito agora. Pera, agora pega os esses. Parece que ele adivinha as coisas que eu preciso fazer. E eu ia concordando plenamente."

    "Quando voltei para casa, consultei o Bernardo: O, acho que,o produtor desse disco  o Liminha. Dois dias depois da gravao do Wander (a faixa chama-se "Meu Punhal"), liguei para o Liminha. Ele riu: Claro, vamos nessa. Mas eu estou indo para Los Angeles. E a comearam as negociaes para ver como ns poderamos fazer esse disco."

    Decididos pela gravao em Los Angeles, Lobo e Liminha se reuniram com a BMG-Ariola. No incio, a gravadora sugeriu que os dois fizessem o disco sozinhos. Mais tarde, cogitou-se gravar um disco de Lobo com diversos msicos norte-americanos ("Seria at um gancho", lembra Lobo). Mas prevaleceu a vontade do artista e do produtor: um disco com a banda de Lobo - Rodrigo (baixo), Nani (guitarra), Z Luiz (sax e flauta), Cadu (bateria) e Alcir Exploso (percusso) - mais eventuais participaes especiais como as de Carlos Bartolini e do tecladista Ronnie Foster (rgo em "Parador", "Essa Noite No" e "Sexy Sua". Nesta ltima, ele tambm toca tack-piano). "Gravar com banda  outra coisa", argumenta Liminha. "Todo mundo se move junto, todo mundo respira junto."

    Faltava, porm, o principal: conseguir que Lobo chegasse a Los Angeles.

    "Falei com meus advogados", explica ele, "dizendo que estava com um projeto de sair do Brasil para poder fazer um disco. Eles, ento, pegaram meu passaporte, consultaram os computadores da polcia federal e viram que havia um nada consta. No tinha, portanto, impedimento algum para que eu sasse do Brasil. Legalmente, eu estava livre".

    "Agora, no queria correr o risco de ser sancionado mais uma vez e suprimir meu trabalho. Passei dois anos virtualmente preso - isso me prejudicou muito. Em transaes de negcio, mesmo. Cortaram minha conta bancria, me chamavam de doido. E a imprensa..." Lobo faz uma pausa. "Estou meio triste com a imprensa, porque fez uma imagem de mim muito exagerada, e porque brincou muito com minha imagem. E isso me prejudicou."

    "Por que essa caa ao Lobo? E por que dessa maneira?"

    " o Bobo pra Cristo, n? Pegaram um bobo pra Cristo. Eu no desrespeitei ningum. Mas tambm sou muito turro. No gosto de fazer jogos polticos, tipo: No, no foi nada disso. Se as pessoas me perguntam, eu respondo. As vezes essa verdade di. E inconvenientssima para um monte de gente. E eu me sentiria no muito together comigo mesmo se ficasse fazendo jogos estratgicos, tipo falar uma determinada frase de efeito para agradar a terceiros. Isso no fao mesmo. Sei que tenho minha conscincia tranqila de que no desrespeitei ningum."

 

    Lobo, ento, se preparou para a viagem. "Bom, eu no ia sair pelo aeroporto internacional do Rio de Janeiro, porque estava escaldado. Os avies onde a gente (ele e a banda) est so parados a toda hora." Ele recorda um episdio em Macei, onde os policiais retiveram o avio em que viajariam Lobo e seus msicos durante cinco horas, alegando uma busca por armas clandestinas. "J estou com mania de perseguio. Resolvi, por isso, fazer as coisas discretamente."

    O plano de viagem, simples, correu  risca. Encerrada uma miniexcurso pelo sul do Brasil, Lobo cruzou a fronteira em direo  Argentina, de carro. "Foi emocionante, de certa forma. Quando cheguei a Passo de Los Libres, eu olhava para o rio Paran, via o Brasil do outro lado... Que alvio, meu Deus! Chega de maluquice, chega!" Aps uma noite na cidade ("J eram quatro da manh, mas estava uma noite movimentada. A sentei numa esquina, rodeado de garotos e garotas, e sa tocando violo. E eles pedindo Rdio Bl e me chamando de El Lobn"). Lobo dirigiu at Buenos Aires ("Foram 1.200 km para cruzar a fronteira, mais 1.200 km para chegar a Buenos Aires") e de l tomou um avio rumo a Los Angeles.

    "Quando cheguei na casa do Limninha, eu no parava de falar. Tinha passado quase vinte horas no avio - parando no Peru e no Mxico. Estava com a adrenalina at o pescoo. Falava, filava, falava, at que a Teca comentou com o Lininha: Mas esse garoto  insuportvel, no pra de falar. Eu estava supertenso. Foi uma aventura la James Bond."

    "A fiquei por aqui com uma sensao de exlio, n? Ningum sabia (da viagem) no Brasil. Quando souberam e a coisa veio  tona... Vi, outro dia, uma srie de recortes de matrias que saram no Brasil sobre a minha viagem e... P, a galera est em efervescncias ululantes. Consultei meus advogados de novo e eles: No tem ordem alguma contra voc. Voc est trabalhando a ." Lobo sossegou.

    "Tudo era por um fio, de um obstculo a outro obstculo. Tudo feito com a maior ateno para que nada desse errado." No poderia haver erro, mesmo porque de erros Lobo j estava farto. Insatisfeito com o resultado de seus discos anteriores - Vida Bandida e Cuidado - Lobo pretendia recuperar o terreno perdido. De preferncia, com juros.

    "Vida Bandida foi feito  deriva", ele sentencia, sem piedade. "O Cuidado est ridculo, tem um som muito magrinho. E eu assumi, porque a produo foi minha, junto com o Bernardo e o Ivo (Meirelles). Mas foi um disco muito difcil. Foi um ano de renovao de contrato e a gente entrou no estdio de solapa, p! O estdio tambm estava ruim, deu no que deu. A gente j estava com dois meses de atraso. Fui para Natal, tentar me inspirar, e nada. Ento voltei para o Rio e eu, Bernardo e Ivo comeamos a fizer uma msica por dia: Ah, eu tenho essa letra (como se embaralhasse cartas), pa-ra-r, pronto! Bom, eu tenho essa msica... A demos um espao de uma semana antes de nove dias de ensaio, depois fixamos nove dias de gravao, nove dias de mixagem, mais nove dias de remixagem. E bvio que voc perde seus critrios quando no tem tempo de parar e poder analisar."

    Apesar da tenso inerente s circunstncias em que foi realizado esse novo lbum, os trabalhos correram relativamente tranqilos, entre trs estdios de Los Angeles. Lobo havia pr-produzido todas as Faixas que entrariam no disco, transformadas em demos meticulosas gravadas nos estdios da BMG-Ariola no Rio. E, segundo ele, Liminha - junto com os engenheiros de som Brad Gilderman e Micajah Ryen -foi absolutamente fiel aos conceitos iniciais de cada msica. Fiz todos os arranjos", diz Lobo. "Mas ele est tirando o som que foi pr-arranjado no Brasil. Botando coisas aqui e ali, mas com uma dose imensa de fidelidade ao meu trabalho."

    A maioria das msicas j estava pronta antes da viagem, exceto "Toda Nossa Vontade" - a faixa que encerra o lado B -, escrita dois dias antes de Lobo sair do Rio de Janeiro. "Parece meio Beatles, meio Let it Be. Eu estava lendo o livro sobre a Olga Benrio e ele termina com, uma carta de despedida, escrita antes de ir para a cmera de gs (Olga morreu, vtima dos nazistas). E o livro  cheio de aventura. Escapa daqui, escapa dali. No sei por que, mas me identifiquei muito com o livro (gargalhadas). E a nica letra minha no disco."

 

    Aventuras  parte, j  hora de retornar ao Brasil. E Lobo e Liminha pretendem levar adiante os planos de trabalho adicional traados na Califrnia: a gravao de um disco ao vivo e um outro, possivelmente em homenagem a Arnaldo Baptista, com a nova gerao do rock brasileiro interpretando os hits do ex-Mutante. "Conversei sobre isso com muita gente", diz Lobo, "e est todo mundo superanimado." (N. da R. - Coincidentemente ou no, um projeto idntico est em andamento desde maro no selo Eldorado, ver Conexo Brasil desta mesma edio.)

    "Estou morto de saudade dos amigos, da famlia, de minha filha", encerra Lobo, antes de voltar  cabine da tcnica do Ameraycan. "No terceiro ms aqui eu j estava me sentindo muito distante do Brasil e das leituras polticas sobre o pas. Fomos  Disneylndia, nos divertimos muito. Administramos bem o nosso paisinho aqui. E o dia-a-dia do Brasil j no me impressionava tanto. Da ter pensado em mudar o ttulo do disco. Sol de Parador j no... Comecei a ter uma leitura de uma despolitizao quase absoluta, radical. Uma coisa que tambm  tpica da minha personalidade - no, nada disso. Vamos fazer um outra coisa. Mas a, como se aproxima a hora de eu voltar, estou comeando a pegar informaes, a ler revistas brasileiras novamente. E ver como est a situao poltca brasileira. Comecei a me envolver de novo.

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