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Caim, 2017 - posted by guest on 3rd February 2021 03:01:55 AM
Eu nasci para isto. Fui criado para isto: correr. Por prazer, por glória, por amor. Aperto o botão na porta e os vidros automáticos descem suavemente, e o vento fresco e forte invade o meu carro, trazendo-me uma sensação aconchegante de paz e conforto. Aqui é o meu lar. Correr é leve, sedutor, e eletrizante. Apesar disto, uma sensação incômoda se instala no meu peito a medida que me aproximo dos outros carros estacionados. Vejo a Lamborghini Aventador branca de Esther há poucos metros do meu carro, que, por mais egocêntrico que fosse, era a nossa marca, por isso não estranho quando esta vem ao meu encontro com o cenho franzido e os olhos em brasa. Antes de poder abrir os meus lábios em explicação, sinto a mão pequena, entretanto forte, a espalmar o meu peito em um empurrão "Onde está a tua?" Mesmo sem explicação, sabia que se referia a minha Lamborghini Aventador de um preto fosco, que entre os nossos amigos, chamávamos de pantera. "Bom te ver, irmã. Que bela noite, não?" Retruco com sarcasmo; a nossa convivência era resumida a isto, insultos, a doce e tenra necessidade de matar um ao outro, mas em conjunto, sentimentos agridoces como proteção, carinho e o nosso fodido amor se emaranhavam no pacote. A minha frente, a loira cruza os braços e espera, inclemente, a minha resposta. Suspiro em desistência, vendo que ela não estava disposta a brincar comigo. "O carburador. Era suposto ter consertado na segunda, aliás, eu te pedi para fazer isto para mim, mas tive problemas com os italianos" explico a ausência da minha preferência automotiva enquanto aponto para o Bugatti Chiron, a minha segunda escolha, "O Bugatti hoje vai ter que servir, ou eu não vou correr" volto a ela com os olhos suplicantes. Havíamos encontrado aqui um descanso dos problemas, quando estávamos aqui, era como se tudo de fodido que nos rodeava simplesmente desaparecesse, deixando-nos tranquilos e sem se importar com nada mais.
Vejo e sinto o momento que ganho a discussão quando ela descruza os braços e suspira em resposta "É a última vez" finca a unha afiada no meu peito como um aviso e se vira, deixando-me para trás com um sorriso vitorioso. Não demora segundos até movimentar o meu corpo até estar atrás dela, em direção ao rápido descanso que tínhamos antes de entrar no carros e despacharmo-nos. Passo o meu braço por seus ombros finos, sobrepujando-a em tamanho e cumprimento as pessoas que por nós passavam. Ela estava calada, o que era atípico. Costumávamos passar as estatísticas de cada carro presente, cada oponente afim de sabermos os perigos que representavam. Éramos invictos, porque éramos uma dupla. "O que se passa contigo?" Pergunto em preocupação, mas as palavras não são respondidas porque, em questão de átimos, os nossos companheiros haviam nos rodeado. Ela se deslaça do meu braço e segue o seu caminho para falar com algumas pessoas, apertando ainda mais o nó do meu peito. Sorrio para algumas pessoas, mas a minha atenção em Michael. Demonstro um sorriso escarnecedor e juvenil para o homem que já estava nos seus 49 anos, com uma barba espessa e um corpo extenso. Paternalmente sou abraçado "Queres virar um Sansão, é isto?" Pergunto a me referir aos cabelos e barba que necessitavam de um corte urgente. Aquele homem, que me havia ensinado tudo que eu hoje sei, franze os lábios, ou assim eu pensava, já que não os conseguia ver e olha para mim com os afiados "Quando conseguires ter ao menos uma barba, conversamos como homens" ao ouvir isto, desfaço-me em uma gargalhada, atenuando um pouco a minha inquietação acerca da noite. Sensação que se dissipa quando vejo os seus olhos amendoados demonstrarem ansiedade "Caim, é uma estrada sinuosa" em instantes, apercebo-me o que ele queria dizer. "Vou controlar a velocidade do Bugatti, não vou passar de 220 nas retas e de 160 nas curvas" coloco a minha mão sobre o ombro do homem, tranquilizando-o, usando um sorriso amplo "Cuidado é o meu nome do meio, Mike, sem preocupações, ou vais acabar por ter cabelos brancos, ou melhor, mais alguns". Com gracejo, movo-me para encostar no Nissan GTR35, que possuía uma cor mesclada do vermelho para o vinho no breu da noite. Ascendo um cigarro, levando o fumo aos meus pulmões quando inspiro a toxina, exalando-a pelas narinas após segurar por algum período. O auxílio químico de uma passividade havia se tornado necessário desde que lá havia posto os meus pés. O ar tornava-se rarefeito quando o inalava. Havia algo de errado com esta noite, e eu não sabia definir o que a premonição que se instalava sob a minha pele podia significar. Sou sacudido pela Esther, sendo retirado às pressas do meu devaneio pela sacudidela. Demoro um longo segundo para focar os meus olhos verdes nos azuis dela, a cor de nossa mãe. Não consigo disfarçar que havia algo de incerto, mas, com o corpo, transmito a mensagem de que não falaria sobre isto. Ela meneia a cabeça para o lado "A corrida já vai começar" tenho de me inclinar para a ouvir devido a cacofonia que se instalava entre os corredores. A noite começaria agora.
Inspiro uma última vez o cigarro e jogo-o no chão. Havia regras que eu seguia na hora de correr, qualquer distração podia custar a minha vitória. Com este pensamento, calco o cigarro sob os meus pés e a acompanho até o carro dela. Despeço-me com um manuseio de cabeça, sabendo que ela própria tinha um ritual que seguiria antes de correr. Começo a deslocar o meu corpo para o meu carro, mas sou parado por sua mão álgida no meu braço. Viro-me confuso para ela, mas perco a linha dos pensamentos quando vejo a agonia estampada no seu rosto. "Esther, o que se passa contigo?" Pergunto com urgência. Ela não demonstrava os sentimentos com constância, quando demonstrava, eram por palavras que acertavam o alvo. Nunca em suas expressões. Sua mão se enrola na parte final da minha camisola, quando busca-me para perto de si. Com os olhos inquietos, tenta manter a concentração em mim "Eu tenho um mal pressentimento sobre essa corrida, Caim". As palavras acertam-me em cheio. Como eu a tranquilizaria quando eu mesmo não havia tranquilidade em mim? Decido ignorar os prenúncios quando minhas mãos formam conchas em sua face. Puxo-a para mim e deixo um fraternal beijo em sua testa, ao tempo em que sussurro contra a pele cálida "Vai ficar tudo bem. Nada vai acontecer contigo". Afasto-me e afago-lhe o lado direito da face, desenhando um sorriso desordeiro na minha face "Estou aqui para te proteger, lembras?" Com um último olhar, finalmente afasto-me dela. Perdendo o sorriso assim que viro as costas. A inquietação em mim havia se transformado em facas quentes que inflamavam e cortavam a pele do meu peito a cada passo que eu dava até o meu carro. Reconheço o Bugatti Chiron preto grafitado e adentro neste. Em modo automático, ligo-o, movendo-me para a linha de partida traçada no chão. Estacionando brevemente entre um Porsche Spyder e da Lamborghini de minha irmã. Sorvo o ar para os meus pulmões de forma brusca, e coloco a preocupação em espera. Traço os meus ombros com uma das mãos, efetuando a fórmula trinitária "In Nomine patris et filii et spiritus sancti, amen" recito a oração, dando término ao rito de preparação. Finco os meus olhos na partida, esquecendo-me dos meus oponentes e focando em mim, naquele pequeno momento antes de liberar toda a adrenalina que corria nas minhas veias como correntes elétricas que aceleravam as minhas sinapses. O som torna-se oco, longuínquo, em concentração, calculo mentalmente a rota, era uma corrida de ida e volta. Um percurso de meia hora. Fixo os meus olhos na bandeira verde que a mulher seminua no meio da pista segurava. Minha vitória começava quando aquela bandeira flamejasse no ar. Piso no acelerador, planejando arrancar com o carro em 0-160 km/h, com a mão presa ao freio de mão, desejoso para o liberar. Quando alcanço a estimativa perfeita, a bandeira solta-se no ar. E sinto a liberdade a correr livremente entre nós quando libero o carro na pista.
O ronco do meu carro era um som apreciado por mim, foco-me nele para distinguir a que velocidade eu corria, olhar o velocímetro estava fora de cogitação. Posto-me atrás da Esther, por poucos segundos, antes de virar o comando para a esquerda e ultrapassa-lá. Abro um meio sorriso ao constatar que estaria 25 pontos á frente dela depois dessa vitória. Em uma disputa acirrada, mantenho-me na dianteira por muito pouco. A frustração invade-me pelo perigo de ser ultrapassado. 0-200 km/h, eu precisava de atingir 0-200 km/h. Piso no acelerador, conseguindo mais alguns centímetros de distância dos demais, mas o pensamento veio tardio, e sou ultrapassado pela Esther novamente. "Puta que pariu" descontrolo-me á frente do comando e começo a pensar em estratégias. A corrida era sinuosa, manter uma velocidade constante seria improvável. Mantenho a velocidade entre 190 km/h e 200 km/h, em segundo lugar. Na frente na frente de River, o filho da puta que era o mais perto que eu podia chamar de um oponente decente no meio dos outros. Havia uma grande rixa entre nós, e eu não permitiria que eu fosse para casa com a cabeça baixa em derrota. Mantenho a velocidade constante até chegar em uma curva, onde sou obrigado a baixar para 160 km/h, tendo em vista manter-me vivo até o final da corrida. O carro derrapa brevemente pela mudança súbita de velocidade, mas consigo controlar e permaneço em segundo. O meu coração golpeava o meu peito, o ar do carro estava pesado, intragável, minha visão, antes perfeita, estava enevoada, opaca, pela desgosto de estar a ver a lanterna do carro em primeiro. Não estávamos tão longe da linha de partida, dez minutos, eu diria, perto de dar a volta. Aumento a minha velocidade para 0-200 km/h, estando agora pareado com a Esther, quando a estrada demonstrava que se tornaria em uma só. Estávamos em uma disputa silenciosa para ver o que passaria por aquela estrada em primeiro, os roncos baixos dos carros a ascenderem a noite silenciosa. Ela pisca com os faróis, mas estou ocupado demais a planejar a velocidade perfeita para atingir o primeiro lugar quando a vejo desistir e diminuir na pontuação para segundo. Vitorioso, acelero ainda mais o meu carro, esquecendo-me da promessa feita a Michael de controlar a velocidade do carro. O meu orgulho estava em jogo, eu não perderia quando já sentia o sabor aprazível da vitória. Alcanço a velocidade de 0-210 km/h, vendo a Esther pelo retrovisor do carro, os faróis ainda piscavam de forma agitada. Distraio-me a pensar no que ela queria dizer com o gesto e, quando volto a minha atenção para a estrada, tardiamente percebo o significado quando noto a curva a se fechar sobre mim. A curva já se insinuava e diminuir a velocidade agora não era a melhor alternativa. Com essa velocidade, tentaria fazer a curva, mas sabia dos riscos que eu estava a correr, mas, confiante, adentro no círculo com uma velocidade demasiado alta.
Segundos se passam antes de eu perder o controle do carro. No princípio da curva, viro o comando e derrapo com o carro. O cheiro dos pneus a queimar no asfalto adentra pelas pequenas frestas do carro, deixando-me nauseado. A adrenalina bombardeada milimetricamente cada parte do meu corpo, mas, dessa vez, ela vem aliada com uma sensação diferente: pânico. O carro não entrava nos eixos, não obedecia ao comando do volante. Olho pelo retrovisor uma última vez, antes de perder o controle total e sentir o carro a mover-se pela curva desfreado.
Algo na estrada, e pela velocidade que eu levava poderia ter sido a menor de todas as pedras, faz com que o carro rompa-se no ar. Sinto a minha cabeça bater contra o volante na primeira vez que ele capota. Um filete de sangue quente desce pela minha testa com a força da pancada; Os vidros chicoteiam contra o meu rosto quando, pela potência da colisão contra o asfalto, se rompem. De forma atrasada, fecho os meus olhos para não ser afetado pelos pequenos cacos. Momentos se passam no ar antes de o carro se chocar contra o chão com toda força coagido pela gravidade. Conto mentalmente as vezes que o carro colide contra o solo, perdendo esta de vista quando a confusão se instala em mim, sendo rapidamente transferida para a dor. Cinco vezes, foi onde eu fui capaz de chegar quando perco o resto da coerência e começo a sentir as sensações proporcionadas pelo ato. O gosto quente de ferrugem do sangue a invadir a minha boca. O sangue que escorria pela minha fronte antes de atingir a minha têmpora. A dor aguda de algo a perfurar o meu pulmão e consequentemente algo morno a colar a minha camisola em meu peito. A dificuldade de respirar, fazendo uma dor afiada a invadir o meu lado esquerdo. A ardência do meu rosto onde alguns cacos de vidro estão instalados. Encontro-me a desejar que isto cesse, que faça algum sentido quando o que havia restado do automóvel estagna na pista . O sangue escorre agora na direção contrária, o meu corpo pendia em uma posição estranha, o que me leva a perceber que havia parado de cabeça para baixo. Escuto gritos, alguns histéricos, outros, desconhecidos. Por sorte, o teto do automóvel era baixo, tornando a situação de me apoiar menos forçosa. Fecho os meus olhos no meio da névoa de dor e sangue, tentando encontrar uma explicação para o que havia acabado de acontecer. Um som fino soava nos meus ouvidos, tornado difícil a conclusão de qualquer pensamento. O meu braço cai sobre o teto, enquanto eu, exausto, tento puxar as golfadas de ar para preencher os meus pulmões fraturados.
Havia agora algo diferente no ar, além do cheiro enjoativo do meu próprio sangue, também havia fumaça. Algo estava a queimar. Escuto um grito de longe, e tento focar-me no resquício de realidade para me trazer de volta, tarefa árdua para o meu cérebro desconexo. Havia um limite de quanta dor um ser humano podia sentir antes de se render, e eu o havia ultrapassado. Abro os meus olhos quando sinto a movimentação envolta do carro. Demoro a entender, mas detecto um rosto familiar entre todos, minha última chama de esperança. "Esth..." Tento dizer, antes de ser atingido por uma dor enlouquecedora no corpo todo. Tento agora estender a mão, pedindo que ela me explique o que se passou, mas o meu corpo já não conseguia obedecer aos comandos que o meu cérebro dispensava. Ela entende o meu desejo e corre para o meu lado, evitando o gajo que dizia para não se aproximar. Apavorada, ajoelha-se ao lado da janela quebrada do carro e coloca a mão sobre o meu rosto. Fecho os olhos novamente com o conforto que aquilo podia proporcionar, mesmo com a dor que causava a minha cabeça. Tento sorrir, e volto a abrir os olhos, encontrando lágrimas em seus olhos e o desespero evidente, o que me faz, finalmente, entender o que se passou. O pressentimento não era sobre ela. Era sobre mim. "Vais ficar bem, Michael está à caminho, não feches esses malditos olhos" escuto a voz como que submerso em águas profundas. Vejo a fuligem em seu rosto, a sujeira em seu corpo e tento eternizar a desoladora imagem para que sejam as últimas cenas que os meus olhos cansados gravem. Procuro a sua mão com a minha, fazendo movimentos débeis até conseguir sentir a pele agora quente nos meus dedos. "Não me vais deixar. Não tens o caralho do direito. Não me vais deixar" tento retrucar, e dizer que eu não vou morrer, mas a minha boca enchia-se a cada momento de sangue, tornando as frases incapazes de produzir efeito. Ela grita algo para alguém, consigo distinguir a palavra fogo e ligo-o a fumaça que sentia a segundos atrás. Pavor se instala nas minhas veias quando o fogo começa a se alastrar e o mormaço a se infiltrar no espaço confinado. Alguém chega por trás dela, puxando-a pela cintura, fazendo-a soltar a minha mão. Ela se debate contra os gajos, que tentam controlar a impetuosidade, o que me trás certo divertimento, apesar de tudo. Sentia um cansaço reconfortante que se infiltrava aos poucos, levando-me a inconsciência, mesmo que lutasse contra a escuridão que se aproximava.
Volto a consciência, zonzo pela posição debilitante de estar de cabeça para baixo, quando outros dois gajos se aproximam, forçam a porta com pressa, tentando solta-la das dobradiças, o que traz a mim, uma dor imoderada surge no tronco. Tento respirar, para acalmar a dor, e engasgo-me com o meu próprio sangue. A lucidez abandonava o meu corpo lentamente, sinto-me a fraquejar quando eles arrancam a porta da dobradiça, o que retira de dentro do meu corpo, o causador do corte entre os meus pulmões. Solto um gemido alto quando o corte se abre ainda mais, perco a estabilidade que a porta proporcionava, tendo agora o meu corpo ensanguentado a pender brevemente para fora. Com os olhos, procuro pela minha irmã, que poderia me proporcionar um pouco de paz e tranquilidade e vejo-a a chorar com a mão a tapar a própria boca para conter os soluços. O braço fino abraçava a própria cintura. Eu havia deixado-a daquela forma. Penso nisso e uma onde de náuseas invade o meu corpo. Perco-me entre a dor e a desolação quando fecho os olhos...
Sinto o chão duro contra as linhas costas e a minha cabeça a se encolher contra algo macio. Não havia mais forças em mim para abrir os meus olhos. Mas detecto o cheiro de minha irmã entre os demais, sim, eu estava em seu colo, penso ao encontrar-me acordado novamente. Agora sentia todas as feridas em mim abertas. Costelas, rosto, braços e pernas. Uma pressa havia sido feita sobre o meu peito, impedindo o fluxo constante do sangue do corte aberto. Era o meu fim, eu não tinha dúvidas disto. Com o último impulso e desejo da alma, abro os meus olhos e encontro a face bela, mas agora deformada pelo caos, daquela que me acompanharia até o outro lado. Tento transmitir com os olhos as desculpas que eu jamais poderia transmitir novamente, tento transmitir o amor que eu sentia por ela, a preocupação; Sem mais forças para gemer com a dor, suspiro uma última vez e entrego o meu corpo o que ele queria. Sucumbo ao desejo desesperador de fechar os olhos, e encontro o que almejava: